Sobre a beleza, NW e o dilema de Zadie Smith

Os livros de Zadie Smith são recebidos com alegria pela crítica. Comentários elogiosos vêm de todos os lados. No caso de Sobre a Beleza, “magistral”, “satírico, inteligente e sexy”, “encanto e espirituosidade excepcionais”, são alguns deles. Em NW a proporção é ainda maior: “um épico urbano”, “um livro raro”, “Zadie Smith é perfeita”.

Mas até que ponto são pertinentes?



Sobre a Beleza vai contar a história da família Belsey. Howard é um inglês branco que dá aulas na Universidade de Wellington e casado com Kiki, uma enfermeira afro-americana. Jerome, Zora e Levi são os três filhos do casal, que vive em uma confortável casa herdada por Kiki no bairro de mesmo nome da Universidade.

Quando Jerome viaja para Inglaterra para se manter longe do pai, após a descoberta do seu romance extraconjugal, é hospedado pela família Kipps – cujo patriarca, desafeto de Howard, é um professor conservador nascido em Trinidad e Tobago – e tem um breve envolvimento com Victoria, filha mais nova de Monty e Carlene Kipps.

De volta à universidade de Brown, Jerome assiste à chegada dos Kipps em solo americano de longe, enquanto sua mãe se aproxima de Carlene e Howard intensifica ainda mais seus conflitos pessoais e ideológicos com Monty – uma versão de ser humano mais segura e bem sucedida do que ele se julga capaz de ser.


NW, por sua vez, tem como plano de fundo o bairro de Kilburn, na Inglaterra, local de convergência cultural. Quatro são as personagens: Nathan, Natalie, Leah e Felix, todos nascidos naquela região.

As visões são apresentadas de modo alternado: primeiro vemos o mundo pelos olhos de Leah, que não consegue lidar com a questão da maternidade e com o medo da morte. Felix é o próximo: depois de encontrar Grace ele decide acertar as arestas de uma vida no mundo das drogas, mas o destino parece não ser capaz de esquecer tudo tão facilmente.

Natalie é uma advogada de sucesso, com uma família-modelo, que vê sua vida se perdendo aos poucos, a cada novo e-mail, a cada novo contato 'anônimo'. Nathan gravita pelos três mundos, acompanhando, de forma mais ou menos direta, o infortúnio de todos, enquanto lida com seu próprio destino infeliz.

As obras são espectros semelhantes de uma mesma voz. A própria Zadie, em entrevista ao Estadão, afirmou: “quando leio algum trecho de algo que estou escrevendo, as pessoas dizem que aquela narrativa soa de forma muito semelhante ao que já escrevi antes.” Para além dos enredos, algumas escolhas de estilo são diferentes nos dois livros – em NW a autora se permite mais e, dentre outras coisas, rompe com algumas estruturas lineares de narrativa – mas, de uma forma geral, vigora mesmo a impressão de já se ter lido algo muito semelhante antes.

O dilema, portanto, é um só e serve aos dos livros: até onde podem ir as entrelinhas?

A escrita de Zadie é convidativa, com diálogos ágeis e descrições que rejeitam o lugar comum. São como ganchos que vão sendo pendurados de maneira competente: mal acabamos de largar um deles e já conseguimos agarrar o próximo.

Leah começa a sentir que está no controle e talvez possa moldar o que resta deste encontro de acordo com sua própria satisfação. Ela começa a fazer seu pai dizer coisas, conduzindo-o, movendo seus braços e manipulando suas expressões, primeiro de forma inocente, e depois deliberadamente, de modo que ele diga eu te amo, sabe. E depois: meu amor, você sabe que eu sempre te amei. E: eu te amo não se preocupe está bom aqui. E até: vejo uma luz. Depois de um tempo ele parece estranho fazendo isso e Leah fica envergonhada e para. E ainda assim ele continua, e com isso mantém a deliciosa possibilidade da loucura, um prazer tão adorável. Se ela não tivesse essa rotina diária a cumprir com sua administração e aluguel e marido e trabalho ela poderia enlouquecer! Por que não enlouquecer? (NW, p. 61)

A utilização de recursos remissivos é comum também: questionamentos e perfis apresentados em dado ponto muitas vezes somente encontram resposta dali a poucas (ou muitas) páginas. Não é incomum, portanto, que traços de personalidade sejam preenchidos de forma dialógica, através da perspectiva de outras personagens.

Infere-se daí, portanto, que Zadie não tem pressa. Os personagens são como colchas de retalho, que vão sendo retocadas a cada nova página, ou sofrendo novos enxertos. Como na vida, tem-se a sensação inquietante de que mudanças estão a acontecer a todo momento. É precisamente nesse ponto que tudo começa a vacilar.

Nessa tentativa de escrever com as cores do real – da incerteza sobre o outro, sobre a dimensão dos seus problemas, etc. – Zadie escapa. São tantos aspectos a considerar na complexa criação dos personagens, na tortuosa interação deles com o mundo, que a textura aberta deixa furos graves. A calma com que a narrativa é conduzida, aos poucos, se transforma em aflição. Porque não se consegue apreender o quão profundo são os personagens e os espaços deixados em aberto vão se acumulando, até o ponto em que a ligação com o leitor se fragmenta. Quando isso acontece, no exato momento em que a verossimilhança deixa de ser sentida, tudo começa a desmoronar.

É nesse instante em que, por exemplo, coloca-se em xeque a maneira como a autora conduziu o momento definitivo dos conflitos da família Belsey, furtando-se a registrar aquele que, possivelmente, seria o retrato máximo da indagação que informa o livro: quais são as coisas realmente belas da vida – e até onde você irá para obtê-las? Ou, em NW, o momento em que as histórias das personagens se cruzam por um breve momento para, logo em seguida, tornarem a divergir.

Ao final dos dois livros, tem-se a incômoda sensação de que Zadie poderia entregar muito mais se não deixasse tanta coisa em suspensão. Há tanta coisa nas entrelinhas que a densidade pretendida escapa por esse espaço.

“Não menstruo há três meses – você sequer sabia disso? Fico louca e emotiva o tempo todo. Meu corpo está me dizendo que o espetáculo acabou. Isso é real. E não vou ficar nem um pouco mais magra nem jovem, minha bunda vai chegar ao chão, se é que já não chegou – e quero ficar com alguém que ainda consiga me ver aqui dentro. Eu ainda estou aqui dentro. E não quero que me rebaixem ou me depreciem por estar mudando... prefiro ficar sozinha. Não quero alguém que sinta desprezo por quem me tornei. Vi você se tornar também. E sinto que fiz o melhor que pude para honrar o passado, o que você era e o que você é agora – mas você quer mais do que isso, quer algo novo. Não posso ser nova. Meu bem, fizemos uma longa viagem juntos.” Chorando, ela pegou a mão dele e deu um beijo no centro da palma. “Trinta anos – quase todos muito felizes. É uma vida inteira, é incrível. A maioria das pessoas não chega a isso. Mas talvez isso tenha mesmo acabado, sabe? Talvez tenha acabado...” (Sobre a beleza, p. 399)

Logicamente, esse ponto de vista pode ser contrariado utilizando-se precisamente os mesmos argumentos, numa espécie de discussão filosófica sobre se o copo estaria meio cheio ou meio vazio. A partir dessa perspectiva, as escolhas de Zadie, que tornam a narrativa sobremaneira aberta, serviriam de trunfo para sustentar justamente que a complexidade das personagens (tal qual a própria natureza humana) seria tão grande a ponto de autorizar a estruturação do livro desse modo. Em outras palavras, a magia residiria exatamente nesse espaço de incerteza, no qual as inferências do leitor encontram guarida. Em seu vídeo-resenha sobre o livro, Gisele Eberspächer defende isso: link.

No final das contas, a escolha cabe ao leitor: como está o seu copo?



Sobre a beleza
Editora: Companhia das Letras
Número de páginas: 446
★★

NW
Editora: Companhia das Letras
Número de páginas: 334
★★

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