Come as you are

(No início dessa semana a lista dos 64 livros indicados ao Prêmio Portugal Telecom foi divulgadaA maçã envenenada de Michel Laub está entre eles, concorrendo na categoria romance. É, desde já, a torcida aqui do blog para esse ano)


Com Diário da queda, Michel Laub inaugurou sua trilogia sobre os efeitos individuais de catástrofes históricas. Nele, a história é narrada a partir da perspectiva de um neto, cujo avô sobreviveu a Auschwitz. Em A maçã envenenada os pontos históricos são distintos, plurais: o suicídio de Kurt Cobain e o genocídio étnico ocorrido em Ruanda, ambos em meados da década de 90.





Ambas as narrativas são construídas de forma semelhante, do ponto de vista estrutural: Laub guia o leitor através de blocos de texto que não têm a preocupação de seguir uma linearidade temporal. Muito pelo contrário, a perspectiva de, em um bloco estarmos diante de um garoto de 13 anos e no instante seguinte sermos tragados para a vida presente do narrador, já homem-feito com dois casamentos frustrados, é recorrente. E, no meu ponto de vista, esse é um dos maiores trunfos de Laub.

É estranhamente curiosa a forma como a história vai se construindo sem pressa aparente,  a partir de uma linguagem simples, direta, que não precisa recorrer a floreios para provocar o leitor. Existe sempre a sensação de que algo ficou por ser dito a cada bloco de texto, algo que pode ou não ser elucidado no instante seguinte, ou só dali a 20, 30 páginas. De modo que, na mente de quem lê, vai-se formando, como se por magia, compartimentos de histórias, que vão sendo pouco a pouco alinhavados. De forma quase imperceptível o quebra-cabeça vai sendo montado até o ponto final em que a obra ganha ares de êxtase.

A grande distinção que fica clara para mim é que em Diário da queda a força do evento histórico tem uma relação direta com os acontecimentos narrados:

“Meu pai cresceu como filho do meu avô, e eu não vou repetir os argumentos da medicina e da psicologia e da cultura que demonstram o quanto um modelo assim pode ser danoso, a figura paterna que fez o que fez ...” (p. 119)

É mais fácil imprimir impacto à narrativa trazendo esse elemento subjetivo de identificação. Desde o início, o leitor é inserido numa realidade ao mesmo tempo intangível e concreta. Isso porque Auschwitz é vista mais por inferências e suposições do que por fatos concretos. Tanto assim que, muitas vezes, Laub se utiliza da referência à obra de Primo Levi[1] para densificar a narrativa, assumindo tacitamente algo que me pareceu muitíssimo digno: só quem viveu o inferno de um campo de concentração tem competência para discorrer sobre ele. A concretude vem dos reflexos que aquela experiência vivida pelo avô teve no pai do narrador e, por consequência nele próprio. E é incrível como Laub, aos poucos, partindo do plano geral da catástrofe histórica, começa a descer até os níveis de consciência individuais:

“Alguém lembra se morreram oitenta ou oitenta mil pessoas em Majdanek, duzentas ou duzentas mil pessoas em Sobibor, quinhentas ou quinhentas mil em Belzec? Faz diferença pensar em termos numéricos, no fato de que Auschwitz e os campos que seguiram o seu modelo mataram cerca de seis milhões de judeus? Para o meu pai importava que não fossem apenas seis milhões de judeus, e sim vinte milhões somando-se aí ciganos, eslavos, homossexuais, deficientes físicos, deficientes mentais, criminosos comuns, prisioneiros de guerra, muçulmanos, ateus, testemunhas de Jeová? (...) O que isso tudo dizia para o meu pai?” (p. 118 e 119)

A experiência de chegar ao fim da leitura de Diário da queda é de uma riqueza deslumbrante, é perceber a força que uma história pode ter ao ressonar muito além das 151 páginas. É preciso tempo para digerir completamente a experiência de ler ‘Diário da queda’. Não foi sem razão, aliás, que o livro venceu a última edição da Copa de Literatura Brasileira[2].

Em A maçã envenenada, por outro lado, Laub corta esse vínculo de identificação subjetiva direta. Quer dizer, o narrador é influenciado por eventos que guardam um distanciamento maior. A impressão é que eles servem de plano de fundo, como forma de relacionar os eventos individuais a um contexto histórico específico. Não se está mais inserido na espiral de transtornos trazidos pela experiência de Auschwitz. Nesse segundo livro, Laub analisa conflitos (e respectivas consequências) que não possuem relação direta entre si, mas que estão unidos de alguma forma em razão da natureza humana dos envolvidos. Ou seja, ele percorre o caminho inverso e parte do individual para alcançar o evento geral: as histórias são vistas sob a perspectiva do indivíduo, suas dúvidas, seus questionamentos, seus conflitos de sobrevivência, e se encontram ao final, não por relação de pela natureza humana deles.

Nesse trabalho de construção, ganha relevo crucial a figura de Valéria, primeira namorada do narrador, cuja mãe morreu em um acidente de carro quando ele ainda era uma criança. Ela é a responsável maior por esse processo de inserção na atmosfera de “Drain You, música do Nirvana que dá o tom da história:

“Ela dizia: você consegue me enxergar por trás da beleza? Você imagina como será quando eu ficar velha? Eu nunca saberei se a impressão que ela causava ao segurar o microfone estava ou não ligada a esse comportamento, o que era mais particular em Valéria, e de tudo o que vivi naqueles onze meses nada foi tão marcante quanto a dúvida sobre o que ela queria dizer de verdade: e se amanhã eu sofrer um acidente e ficar desfigurada? E se o meu corpo se tornar repulsivo? E se eu começar a cheirar mal, a apodrecer na sua frente? Alguém pode dizer que ama outra pessoa se não fizer esse teste?” (p. 65)

A maçã envenenada ganha ares mais maduros do que Diário da queda. Nele, há muito mais em suspensão, os conflitos não são perfeitamente delineados, como se, de propósito, não se pudesse chegar a uma conclusão. Como se, da mesma forma que não se consegue alcançar o grau exato de desespero que levou Kurt Cobain a fazer o que fez, não se pudesse dimensionar e responder a certos questionamentos essenciais, como os que a personalidade fragilizada de Valéria foi capaz de formular, por exemplo.

“É preciso coragem para se machucar de propósito. Algumas pessoas passam a vida toda sem conseguir aplicar uma injeção em si mesmas. Não é qualquer um que tira um espinho usando a ponta de um canivete. É mais fácil pensar em tomar um frasco inteiro de remédios e dormir para sempre sem sentir nada do que bater uma porta no dedo indicador. Em abstrato é possível decidir qualquer coisa (...)” (p. 74)

Por último, achei que o final de A maça envenenada soou mais coerente do que Diário da queda. Camila Kehl, do Livros Abertos, definiu com perfeição a experiência da leitura: “A maçã envenenada é um soco no estômago”. De fato.

É difícil não enxergar nessas duas obras de Laub algo memorável, que precisa de tempo e muita reflexão para ser processado. Cada um, à sua maneira, e com rigorosa competência, consegue fazer pensar, traz aqueles desconforto próprio do que é grande, do que precisa ser conservado. Aguardo muito, muito ansiosamente o final da trilogia.



Diário da queda
Editora: Companhia das Letras
Número de páginas: 151
★★★★★

A maçã envenenada
Editora: Companhia das Letras
Número de páginas:119
★★★★★




[2] Na final, Diário da queda venceu O sonâmbulo amador (de José Luiz Passos). A partida final da Copa pode ser vista aqui: http://copadeliteratura.com.br/index.php/clb-2012-2013/jogo-23 .

5 comentários:

  1. Bem bom o texto!
    Não li o "A maçã envenenada" ainda. Agora deu mais vontade, rs.
    Abraço!

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    1. Meu caro, seja bem vindo!
      Assim que puder, corra pra ler. As chances de você não gostar são pequenas demais. O livro é incrível!
      Volte por aqui sempre que quiser!
      Abraço!

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  2. Tenho que ler o quanto antes A maçã envenenada! Seu texto está ótimo e muito bem escrito. Parabéns pelo blog, Renato!

    Karlinne

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    1. Karlinne!, seja bem vinda! E obrigado pelo elogio. De verdade!
      'A maçã envenenada' é uma experiência incrível, fica ressoando por muito tempo depois da última página.
      Volte sempre que tiver vontade: as portas estão sempre abertas!
      Abraço!

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  3. Cheguei aqui pelo Skoob (uma divulgação na minha página), eu não teria dado muita atenção, se o mote da resenha não fosse o livro chave da minha dissertação que está em fase de parto. Adoro o Laub e o admiro pela genialidade em fazer justamente isso que você apontou: nos levar ao fim sem que saibamos estarmos a caminho de alguma coisa, acho isso uma característica fantástica! Muito interessante o seu texto e a comparação entre as obras. Trabalho com O Diário da Queda e, talvez por isso, acho que o enredo é bem mais impactante do que o de A Maçã Envenenada, acho que ele cria laços mais fortes também, nesse quesito eu discordo de você, rs. Não sei se você já leu os outros livros do Laub, mas acho interessante como o trauma aparece nas tramas, nunca o mesmo, mas sempre presente.

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