Os fiordes de cada um


A desumanização é o mais novo livro do português Valter Hugo Mãe, publicado por aqui pela Cosac Naify. O vencedor do prêmio Portugal Telecom de 2012 viajou até a Islândia e fez desse livro, nas suas próprias palavras, “a mais sincera declaração de amor aos fiordes do oeste islandês”.





A história começa com a cena da pequena Halla assistindo ao enterro da sua irmã gêmea (Sigridur). Num cenário tão poético quanto melancólico, Valter Hugo dá, desde o princípio, tons de entardecer à narrativa. A sensação é de que faz sempre frio, e o azul de fim de tarde parece envolver a gente a cada nova página.

Foram dizer-me que a plantavam. Havia de nascer outra vez, igual a uma semente atirada àquele bocado muito guardado de terra. A morte das crianças é assim, disse a minha mãe. (p. 9)



Tudo se ergue, daí por diante, pelos olhos daquela que ficou pela metade.  Passamos a conhecer seus medos, suas inseguranças. Logo ela, que se achava a parte menos importante, via-se agora obrigada a encarar o mundo por si e pela irmã.

Os conflitos vão se adensando à medida que a morte de Sigridur se perpetua na rotina. Mais uma vez aqui – à semelhança do que fez em a máquina de fazer espanhóis –, Valter Hugo enfrenta o desafio de contar a vida pelos olhos dos que sobrevivem. No entanto, a perspectiva é absolutamente distinta: se na obra vencedora do Prêmio Portugal Telecom de 2012 a narrativa é construída pelos olhos de um homem de 84 anos, agora os questionamentos são feitos pelos olhos de uma menina.

Outra comparação importante entre os dois livros parece ter relação com o corte espacial feito pelo autor. Em a máquina... antônio jorge da silva vê-se limitado pelas paredes do asilo ‘feliz idade’; em A desumanização Halla é sufocada não por paredes, mas pela próprias Islândia. É como se Valter estivesse sempre a fechar o cerco em torno dos personagens, a testar-lhes o discernimento em situações extremas.

Daí porque os questionamentos feitos pela narradora vão se adensando a medida que o tempo vai passando, sem que soem em momento algum inverossímeis e tendo sempre como pano de fundo a certeza de finitude. A costura dos personagens é feita de modo híbrido: de dentro pra fora e, ao mesmo tempo, de fora pra dentro. Valter faz da Islândia uma personagem silenciosa do livro, que fala através do vento, das baleias, da “boca de deus”, e está em diálogo ininterrupto com o que de humano existe.


No entanto, e acima de tudo, parte-se do indivíduo para interrogar qual a relação da morte com os vivos, a função da religião, as dores dos remanescentes, o amadurecimento precoce.

A linguagem poética, traço marcante de todas as obras de Valter, é testada mais uma vez aqui. O livro é curto, mas é bastante complicado encará-lo de uma só vez: é preciso tempo para digerir. A escrita de Valter machuca e encanta ao mesmo tempo, sobretudo pela profundidade inexplicável nascida da união de vocábulos simples.



A desumanização deixou nas entrelinhas, para mim, a impressão de um tom experimental, como se colhesse elementos de a máquina de fazer espanhóis e de o filho de mil homens, intensificando a influência que o meio pode ter na formação do sujeito. Resta saber se esse traço permanecerá, ou se justificou pela proposta de isolamento da Islândia. De toda sorte, uma coisa é certa: Valter continua acertando.

“Algumas coisas, como deus, existiam sem nome. Talvez nós próprios não tivéssemos nome e andássemos iludidos com aquele que usávamos. Talvez nós próprios fôssemos outra coisa que não aquilo que nos habituáramos a pensar ser.” (p. 34)

“Depois respondi-lhe: talvez a morte seja só uma maneira de simplificar a alma. A morte é a simplificação das almas. Deixa-as libertas dos infinitos pormenores do corpo. Libertas da sua vulnerabilidade. Ele deteve-se por um instante. Eu repeti: o corpo suja a alma.” (p. 40)



A desumanização – Valter Hugo Mãe
Editora: Cosac Naify
Número de páginas: 160

**As fotografias das paisagens foram capturadas pelo próprio Valter Hugo Mãe durante o período em que se isolou na Islândia para escrever o livro. Podem ser vistas na página do Facebook do autor.**

8 comentários:

  1. Nossa, que interessante.
    Adorei a forma como você escreveu e ela me despertou uma vontade muito grande de ir atrás e ler, de ver se eu chego à mesma conclusão que você.
    A linguagem poética não é algo que me atraia muito, mas sempre tento dar chance para tudo.
    Beijos e parabéns!
    http://mileumdiasparaler.blogspot.com.br/

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    1. Brigadão pelo carinho, Bruna. Muito feliz com sua impressão. Quando encontrar um tempo tenta dar uma chance a Valter: o que ele escreve é bonito até dizer chega.
      Beijo!

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  2. Adorei esse livro, ótima linguagem. Apesar de concordar que ela tem um alto grau de poeticidade, discordo que não flua muito bem, não achei assim tão densa.
    Em algumas discussões sobre o livro foi levantada a questão de que o lugar não é tão específico, o narrador pode estar falando de qualquer outro espaço no campo. Discordo em parte por Islândia conter uma misticidade que outros espaços não, mas achei válida a critica como ponto de reflexão.
    Gostei muito da sua resenha comparatista do livro com outros livros do autor. De fato ele retoma alguns aspectos presente em outras obras.
    Parabéns pelo texto.

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    1. Kniphoff, adorei suas considerações. Concordo com você quanto à inespecificidade do lugar. Olhando em retrospecto, dá pra notar que a Islândia, muitas vezes, só é percebida por referências postas além do texto (como na nota do autor, por exemplo). Me pergunto, no entanto, se isso não teria sido proposital. Como se o livro quisesse adotar um pouco o tom viajante que Halla conta acerca de Sigridur. Além do mais, sinto constantemente que Valter tem um carinho grande pela transcendência: como se a história, a despeito de islandesa, fosse também universal. (Daí, eventualmente, a falta de esmero em codificar a paisagem, fazendo da personagem-Islândia alguém tão presente quanto misterioso).
      Fiquei muito feliz com seu comentário.
      Abraço e obrigado!

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  3. Olá, Renato. Gostei do convite para aparecer por aqui!
    Este foi o primeiro livro do Valter Hugo Mãe que li e gostei tanto que pretendo ler os demais em breve. A narrativa é fluida e bela.
    Através do amadurecimento de Halla ao longo do livro, aprendi a "ser longe".

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    1. Emilia, seja muito bem vinda!
      Valter é encantador. Tenho certeza que você encontrará nos outros livros novas formas de se encantar.
      Volte sempre que quiser: será muito feliz tê-la por aqui outras vezes.
      Abraço

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    2. Qual o próximo livro dele que me recomenda?

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    3. Então, se você quiser continuar na temática da morte diria 'a máquina de fazer espanhóis'. É o livro que mais gosto dele.
      'O filho de mil homens' é muito bonito também: é uma história de salvação pela ternura. Esses dois são os que mais se aproximam de 'A desumanização'.
      Agora, se você quiser mudar totalmente a perspectiva tem 'o remorso de baltazar serapião', que é inquietante e desafiador.

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